Amor de vó por Adriana Janaína Poeta/ 2008/ Clube de Leitura dos Poetas

     Não é segredo que eu fui criada até os nove anos por minha avó. Minha mãe sempre trabalhou e estudou muito, por isso, eu e meus irmãos passávamos boa parte dos dias com ela. 
     Sei que não existem avós iguais, como qualquer ser humano, todas são diferentes. Já ouvi vários relatos, alguns tristes, outros engraçados, saudosos, amargos... Creio que todos são verdadeiros. Não se ensina afeto, é algo que nasce com a gente.
     No nosso caso, tivemos o privilégio de conviver com uma mulher muito especial. Seu coração era tão grande e puro, que sempre tinha uma palavra positiva para cada situação. 
     Dona Nair Sabatini, filha de italiano com uma Índia brasileira que morreu durante o seu parto. Foi criada pelo pai, que viajava muito como representante de uma empresa, e que casou com uma viúva que tinha duas filhas.
     Por mais amor que recebesse, minha vó sentia falta do amor materno, até conhecer a minha bisavó, Ermelinda. 
     Dona Ermelinda, uma outra mulher forte, como muitas na minha família, cuja história outro dia conto, tinha um filho, meu avô Raul. Ficou apaixonada por Nairzinha, como a chamava, antes mesmo de meu avô conhecê-la. Os dois se casaram, meu avô foi o primeiro e único na vida dela.
     Minha vó vivia cantarolando canções que ouvia do pai na sua infância, adorava cozinhar e preparava todos os tipos de massa imagináveis. Fazia uma bagunça na cozinha que desesperava minha mãe, e eu simplesmente amava. Ia juntando os ovos, farinha, sal e tudo chegava no corredor e na sala, sempre que o telefone ou a campainha tocava. 
     Para mim, sempre foi uma festa, ouvir suas histórias, enquanto lembrava as que sabia de cor ou lia nos livros que minha mãe comprava. Ouvia as suas canções de infância, enquanto eu fazia mil perguntas, e ela sempre tinha paciência. 
     Era comum que eu e meus irmãos esperássemos ansiosos pelos seus bolinhos de chuva, ou para dividir a tigela com a massa ainda crua, depois que ela despejava a maior parte da massa na forma, ou preparava os seus deliciosos bolos. E ela fazia isso cantando...
     Para minha avó, que chamávamos de mãe e assim foi até que ela partiu, nós éramos perfeitos. Não tínhamos defeitos e tudo era permitido. Ela desculpava e tinha uma explicação para cada arte de criança que fazíamos, e brincava com a gente, como se voltasse a ser menina.
     Eu lembro do seu cheiro, seus gostos, seu riso. A maneira como ajeitava as suas saias (minha vó usava anágua!), a forma com que prendia parte do seu cabelo, tão fininho e o jeito que o grampo sempre ia escorregando, e ela voltava a prender.
     Minha vó gostava de experimentar as frutas antes de comprar, amava passas ainda com os raminhos (eram mais frescas), e não comia massas misturadas com nada que não fosse apenas os molhos.
     - A massa perde o gosto! Massa tem que ser servida apenas com o molho, não com feijão, carne ou qualquer coisa junta. Isso se come depois, senão perdemos o paladar. - Ela dizia.
     Lembremos que ela fazia e cozinhava a massa. E tinha os pastéis!...Hummmm...
     Minha avó morou sua infância num sobrado no centro do Rio de Janeiro. O ferro de passar aquecia com carvão quente, a luz dos postes era acesa e apagada com pavio, leite era vendido e entregue na porta de casa na garrafa de vidro, coca cola era xarope vendido na farmácia...
     Das muitas lembranças que tenho comigo, carrego as dela no peito como abrigo. Minha vó foi anjo que andou por aqui, e muito do que sou, dessa reserva de amor que eu me sirvo, eu devo a ela. Foi seu grande amor e respeito pelo mundo, a natureza e as pessoas, que me ensinaram a sempre buscar acreditar no melhor, acontecesse o que fosse. 
     Dona Nair tinha sempre uma palavra amiga, detestava e não participava de fofocas. Preferia o silêncio. Quando alguém reclamava de alguma dor, fosse ou não conhecido, lá ia dona Nair no quintal, onde plantava as suas ervas medicinais e flores. Voltava depois com a xícara de chá prontinha.
     - Beba, isso passa logo. 
     Minha tia Bertille herdou dela esse hábito, que eu trago comigo também. O que pode ser curado naturalmente, com chás e sementes, deve ser feito assim. A natureza tem tudo, basta procurar bem. 
     Iamos a missa aos domingos, e depois ao cinema, ou parques e circos. Ela simplesmente era apaixonada pelo Circo. Ria de qualquer coisa, porque minha vó tinha a alma leve e feliz, seu riso era fácil. Não guardava tristeza, preferia a alegria. 
     Outra coisa que ela sempre fazia questão de procurar, e já era escasso, era o fotógrafo conhecido como "Lambe-lambe". Um moço na praça com sua câmera imensa e o banquinho, para gente sentar e tirar a foto. Isso lembrava a infância dela, e eu também adorava.
     Quando um de nós tinha uma febre que não passava depois de ir ao médico, ela levava na rezadeira. Com faca sem ponta ou galho de arruda fresco, ela rezava o Pai nosso. A febre passava.
     - É mau olhado...- Explicava.
     Com ela eu podia tomar café na xícara escondido, que ela esfriava passando de uma xícara para outra, sem que minha mãe visse. Como eu sempre fui criança muito ativa, minha mãe proibia café puro. A vó, que sabia que eu gostava, deixava. Dona Nair também deixava eu desfilar pela casa com os sapatos finos e de salto da minha mãe, joias, vestidos, echarpes, arrastando as bolsas maiores do que eu enquanto brincava. Sempre que minha mãe percebia algo estranho, um fio puxado, um arranhão no sapato novo, ela sempre dizia:
     - Fui eu, usei porque achei lindo! Me desculpe, mas não resisti...
     Eu não sabia porque sempre tinha as desculpas perfeitas, o sorriso e o afago sempre à mão. Minha vó tinha um amor sem limites, amor maior que o mundo! Sempre que alguém pedia um prato de comida, ela, como minha mãe e tias, levava a pessoa para dentro de casa, servia o que tinha a mesa, conversava. Ajudava. Para elas era inadmissível deixar alguém com fome ou frio.
     Ela viu passar as duas Grandes Guerras, a era do rádio, da televisão e dos grandes festivais, a Ditadura. Não viveu para presenciar a volta da Democracia. 
     Foi embora numa noite fria e nublada. Sobreviveu a dois AVC, mas não resistiu ao terceiro. 
     Na igreja, toda azul com a imagem de Nossa Senhora das Graças, de quem era devota, eu me despedi sem saber ainda o que era a morte. Como não havia decorado ainda nenhuma oração, eu cantei baixinho uma das suas canções de infância. 
(Amor de vó por Adriana Janaína Poeta/ 2008)
Clube de Leitura dos Poetas​






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