A desesperada Armadilha/ in SCity Por Adriana Janaína Poeta
A desesperada Armadilha/ in SCity
Por Adriana Janaína Poeta
Passava das nove horas da manhã quando Ann
acordou. Havia um cheiro forte de carne de coyote queimando, e barulhos de
copos sendo manuseados com descuido.
O sol rasgava a penumbra do quarto, com os
grãos de poeira dançando nos seus raios quentes, como tocha ardente.
- Mauro ...Eu te amo! – Gritou um homem
com voz arrastada, típico de quem já entornou barris...
Ann pôs-se de pé. Foi dormir tarde, nascia
o sol, e agora tinha que despertar com nova arruaça. Não bastasse aquele calor
sufocante, o ar seco, havia o velho sobrado do Junio, que tinha negócios com a família S, sempre se
esgueirando pelas janelas, telhado e terraço, ouvidos e olhos bem abertos, para
o relatório. Do segundo pavimento podiam avistar boa parte do quintal,
frente, a lateral e fundos. Não bastasse
isso, construíram há cerca de dois meses, um terraço nos fundos, com muro
baixo, para facilitar ainda mais o eventual acesso ao terraço da casa de Ann e
Marc.
Não foram poucas as vezes em que
surpreendeu Junio com os olhos compridos por cima do muro, ou a grande cabeça
ornada com cabelos da cor do piche, pendendo, através do portão...
No mês de outubro, numa ida ao banco
local, no final da tarde, Ann aguardava a sua vez de ser atendida, quando
sentiu um filete de vento, abafado e estranho, no seu pescoço. Lá estava Junio,
com aqueles olhos esbugalhados, pele oleosa, cabeça desproporcional ao restante
do corpo, desconcertantemente colado a ela, embora houvesse muito espaço e nenhuma
necessidade de estar tão próximo. Ao perceber o seu desconforto, Junio
exibiu o seu costumeiro olhar, desagradavelmente hipócrita e repulsivo. Não lhe faltava apenas a harmonia nos traços
e gestos, tudo na sua pessoa exalava algo desagradável.
Por mais de uma vez notou os seus olhares
invasivos e desrespeitosos, quando estava no quintal, quando saía para algum
afazer, agora, no banco. Imediatamente se afastou, enquanto ele exibia aquele
riso rasgado e abjeto, que inspirava, no mínimo, pena.
Era comum que tanto os S quanto Mary e Mauro,
irmaõ de Marc,
frequentasse o sobrado. Da sua casa,
podia ouvir boa parte das conversas no terraço, enquanto todos inclinavam suas
cabeças na direção da casa, como se observassem, atentos, uma interessante
paisagem.
Mas, há uma semana, Junio, esposa, filha, deixaram o sobrado, pela segunda vez em menos
de um mês, mas desta vez, talvez, definitivamente, após uma misteriosa conversa
entre Junio e Mauro, após nova tentativa de armadilha ilegal fracassada...
Lembrava-se bem daquela madrugada fria. Passava
das duas horas quando ouviu barulhos e vozes no terraço do Junio. Como
derrubaram algo pesado, levantou-se e foi até os fundos, ver se haviam jogado
algo no seu quintal, observando pela janela...
- Escute bem, Mauro. Se eu tiver problemas,
você terá maiores...Não vou ter problemas, ouviu bem?
- Não haverá...Já pensei no que fazer,
desta vez vai dar certo...
- Escute, você já disse isso antes, várias
e várias vezes... Eu não vou ter problemas...Você está acabado, se eu tiver.
Ann
fechou a janela e voltou para o quarto, estranhando a conversa, já que os dois
sempre foram aliados e confidentes. Em todas as tentativas ilegais de invasão a sua
casa, Junio não só permitia que entrassem pela sua casa, como servia a todo o
bando de invasores, como velhos conhecidos, tendo ele mesmo já invadido durante
ocasião em que Ann e Marc estavam ausentes, quando o imóvel, documentos e
pertences foram depredados e subtraídos. Chegava ao cúmulo de avisar Mary e Mauro, cada
vez que ela deixava a casa, para ir ao banco ou ao mercado, quando estava no
quintal, porque não parecia querer fazer segredo da estreita relação que tinha.
O que sempre a fazia ponderar sobre a questão.
Enfim, depois desta conversa que ouviu, deixaram
a casa. Voltaram duas semanas depois, e na semana passada, após nova armadilha frustrada
de invasão de Mauro, usando mercenários, Junio, esposa e filha, deixaram a
casa, com muito alarde, discussões e barulho, transportando parte do mobiliário,
bem apressados.
Mas, lá estava a balburdia habitual com
que costumavam dar reuniões que atravessavam noite e madrugada, como se o
sobrado se convertesse num Saloom do centro da cidade. Os antigos moradores,
aparentemente, não haviam retornado.
Na verdade, ouviu Mauro, na manhã seguinte
a ameaça de Junio, dizendo que daria um sinal, comprando o sobrado, que este
era o único imóvel que Junio tinha, mas que iria passá-lo adiante, porque não queria
ficar com ele. Disse
para eles, ter conseguindo um lugar que agradaria a filha deles, relutante em
deixar o sobrado, para que continuassem
aliados satisfeitos.
- Mauro: eu te amo! – Repetiu um dos seus
jagunços, da varanda do quarto da frente do sobrado, com uma garrafa de uísque
barato já quase vazio.
Ann, da janela, viu Mauro subir no cavalo,
taciturno e enraivecido, e ir embora, diante da nova tentativa ilegal, frustrada.
Na casa ao lado, continuavam os gritos,
música alta.
- Pessoal, ele liberou o Chouriço!
- Ihuuu! – Disse Cacau.
- Põe no fogo logo!... – Avisou Daniel.
- Bebidas! Alguém tem que ir buscar mais...
– Disse Vadinho.
- Alguém viu meu Colt
45? – Perguntou Rocha.
- Não é
aquele ali com a nota de 5 dólares enrolada? –
Disse Almir.
- Você está brincando?!...- Apressou-se em
dizer Edinho, buscando sua arma. – Essa aqui é minha...Sou um homem
prevenido...
- Porque afinal isso, hein?...- Perguntou
um membro novo do grupo. Apontou para a
casa de Ann e Marc.
- Isso é assim, Mary e Mauro não são de
pagar. Então, querem dar um fim nisso, sem ter que entornar as moedas. Garantindo
o silêncio sobre tudo de errado que fizeram, protegendo ainda os grandes
interesses você sabe de quem...Não querem pagar e nem que saibam o que eles
fizeram, a exposição que esses dois estão fazendo, revelando tudo. Querem o
silêncio final do tal Marc, mas essa aí, essa doida... – Parou apenas para
entornar um pouco de uísque na garganta já seca. Limpou a boca com a manga da
camisa, pois já estava tão bêbado que sua mão perdia a firmeza. O uísque descia
pelo rosto e pescoço, além do que conseguiu engolir e agora queimava seu
estômago. – Cadê a carne, afinal? Alguém traga logo um pedaço!... – Berrou, se
desequilibrando e caindo no chão. – Meu estômago está tão vazio e quente quanto o deserto... – Levantou as mãos
esperando que alguém o ajudasse a se erguer, mas como ninguém o fez, foi
escalando os móveis, até ficar quase de pé, equilibrando-se na cristaleira
abandonada.
- Termine de contar. – Perguntou o novato.
- Mas, o que eu contava?... Ah...Sim...A
doida, essa tal Ann, está na casa, não sai de lá, e não sabemos onde encontrar
esse Marc, a quem nosso amado benfeitor, que deu o chouriço e proporcionou além
de tudo mais, essa bela estadia...Bebidas...O que precisarmos para a
tarefa...Essa doida atrapalha as armadilhas que Mauro, nosso chefinho, e Mary,
fazem para acabar de vez com esse tal Marc, não terem que pagar e nem mesmo
responder pelo que fizeram...Não foi pouco, hein?...- Dizendo isso começou a
rir, segurando a barriga, como se doesse, enquanto fazia algumas caretas de dor...-
Que uísque dos infernos esse, hein?! Vá lá na cozinha e pegue mais uma garrafa.
Está quente demais e não quero ficar sóbrio hoje...
- Eu soube que deu polícia lá, e isso
irritou Mary e Mauro. – Comentou o novato, já trazendo a garrafa de uísque.
- Foi...Mas nosso amado amigo tem um
esconderijo secreto, atrás do armário, no quarto dele...- O jagunço embriagado voltou
a rir, e quase caiu novamente, enquanto voltava
a molhar a garganta com o uísque,
enquanto sentia o redemoinho de fogo revolver seu estômago. Desta vez uivou de
dor. - O que um desgraçado tem que fazer para ter
um pedaço de carne queimado no estômago?! – Vociferou, na direção de quem
chapava a carne na brasa.
- Está cru. Quer carne crua?
- Traz o que tiver malpassado. Esse uísque
dos diabos está torrando minhas tripas!
- Você falou num esconderijo? No sótão?
- Não...Não...Você é curioso, hein, novato?!
O esconderijo é estratégico, atrás do armário de madeira, embutido, tem uma
porta falsa. Ali ...pode ficar bem escondidinho, se precisar e guardar seus
brinquedinhos, seu ouro, documentos importantes, seus Winchester
73, e tudo mais que ele gosta de colecionar e guardar, enquanto mamãezinha dispensa
todo mundo. Ali só entra Mary e Mauro, mais ninguém, e eu sei porque vi
escondido, pela fresta da porta, sem que eles soubessem, e só vi de raspão ...Eles
acham que ninguém sabe...Eu é que não sou tonto de dizer que sei, sabendo que
são tão furiosos...Ah, a carne, finalmente. – Disse o jagunço, destrinchando com
a mão suja e praticamente engolindo a
carne malpassada, com fome e pressa. Não
passaram dois minutos, tudo que comeu e parte do uísque barato foram despejados
no chão, no tapete, junto a cristaleira. Passou o braço da camisa pelo rosto
imundo, de joelhos, apoiado a cristaleira. Ergueu a cabeça... – Quem pegou a minha garrafa de uísque?...Inferno...Foi
você, novato?...Um homem não pode se distrair...Cão do inferno, volte aqui com
meu uísque!...
- Toma. –
Disse outro, entregando a garrafa. – E pare de falar, está falando demais com o
novato. Quer que o chefe te mande embora?...Deixa ele saber que a sua língua é
um tapete de teatro...
- Você
não vai contar para o chefe, né?! Eu nem contei dos uniformes estratégicos que
o chefinho guarda no armário, para quando precisar...E os distintivos para
brincar de xerife...
- Você
já bebeu demais. Ou toma um banho frio ou vai dormir em algum canto, para não
atrapalhar tudo.
Já
completamente bêbado e incapaz de levantar, ele esperou quem chamou sua atenção
se afastar e fez um gesto de desdém.
-
Ah...Homem sem humor esse...- Ergueu a garrafa de uísque o quanto pode, já que
cada gesto era agora um desafio. - Mauro, eu te amo!...- Bebeu mais um gole do
uísque, e desabou no chão, junto a carne malpassada e não digerida engolida, e
todo o uísque que seu organismo renegou.
- Esse
aí já era. Só amanhã. Se acordar...Fraco demais para o bom uísque...- Disse o
novato, ao vê-lo desacordado.
- Deixe
ele. Estamos há semanas nessa empreitada. Porque Mary e Mauro não querem
responder pelo que fizeram, e os dois aprontaram...- Disse, mostrando seus dois
dentes de ouro que brilhavam tanto quanto o suor que escorria pelas suas têmporas
sob a luz da manhã escaldante de SCity, em dezembro. – Os dois malandrinhos
pintaram, bordaram, costuraram e não imaginaram que um dia, haveria a remota
possibilidade de ter um encontro marcado com a lei para responder por um terço
das manobras escusas que fizeram...Esses dois... - Voltou a rir, sacudindo os
ombros e olhando ao redor. – Deram nó
em pingo d’água, selaram fogo e apearam
em ventania...Assim são os que estão acima da lei, novato. Gente como Mary e
Mauro podem fazer tudo, com quem quiserem, que tem sempre quem aceite um agrado
para distrair o canhão da Lei. Pelo menos, tempo suficiente para causar
bastante estrago. E se, quem eles fincaram as esporas não ficarem quietos e
mansos com a ração amarga...Bom...Eles dão um jeito. Fazem o que for preciso e
o tempo é o aliado. Como gostam de roubar tempo, de esticar a corda e empurrar com a barriga...Danados como os
lagartos, e vão trocando suas patinhas na areia quente, até onde puderem ir...Tem
sempre quem se venda por uma garrafa de uísque e uma carne na brasa...Quando
encontram quem recuse ou não abaixe a cabeça para servir de tapete para
eles...Iche...Ficam brabos...Igual búfalo graúdo! Afinal eles estão acima de
todos, acima de tudo...
- Então,
qual é o plano?
- O
plano é ganhar tempo, ficar aqui no sobrado, de olho, é arrancar ela de lá e
achar o Marc. Usar quem quer que seja preciso usar para isso. Qualquer refém e isca, quem quer que seja, de que idade for
preciso...Tudo. E arrastar esse Marc e essa Ann até Mary e Mauro, e se os dois
não desistirem de lutar e não ficarem quietos, assinando tudo o que eles
querem...Vamos resolver do jeito que der...Fazer o que for preciso para tudo
ficar como está e continuar ganhando nosso chouriço e uísque.
- Alguém
traz mais uísque!... – Murmurou o jagunço deitado no chão, sem abrir os olhos.
E começou a roncar.
<Continua...>
(As
Armadilhas por Adriana Janaína Poeta/ in SCity - 11/12/2017)
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