A cantora sertaneja por Adriana Janaína Poeta/ in 50 Contos/ SCity

- Salvou tudo?
- Tudo.
Jorge passou os olhos atentos pelos impressos. Pasta pesada, fartas evidências reunidas ao longo de 06 anos.
Ana parecia cansada, mas a conhecia. Sabia que não descansaria até que a criança estivesse a salvo, de volta aos braços do pai.
- É... A mãe do criminoso está movendo céus e terras, contatando todos os amigos que possuem algum cargo no legislativo, para tentar salvar a pele do filho pedófilo. – Comentou Jorge e bateu as cinzas do cigarro no cinzeiro que trouxe da última viagem a Londres. Um cinzeiro de metal acobreado com relevos do Big Ben. – Veja bem, é comum nessas situações. Ficar bem próximo da criança, e faz isso através da mãe da própria criança indefesa. Leva mãe  e criança para uma cidadezinha do interior de São Paulo, onde tem amigos e pode controlar. Uma cidade bem pequena, onde a menina possa ficar vigiada e ainda mais indefesa, coagida, escondida. Tudo o que querem, e não apenas a mãe do sujeito que a criança denunciou, mas a mãe da menina, que permitiu e obrigou, depois omitiu e fez o que pôde para que todos acreditassem que a criança mentia e inventava tudo, é isso. Temos ainda quem, a exemplo dos interessados em SCity, ajudaram a encobrir tudo, para tentar usar o sofrimento do pai e da criança em benefício próprio, o que já sabemos. E os que ajudaram, por motivos vários: quem enxerga no sexo oposto apenas uma fonte de renda e aposentadoria precoce, os familiares que, de alguma forma, viram no fato benefícios futuros, e os inocentes úteis de sempre. Quem se omite e torna-se cúmplice, porque simplesmente é mais cômodo. Não enxergam o sofrimento e mal que fazem às vítimas.  Por que enxergariam? Não é filha deles. O pai, a outra vítima, não é filho, pai, irmão, sobrinho, primo, neto ou amigo deles.... Então, por que sentiriam algum constrangimento?...A verdade, Ana, é que, ao ser comunicado dos fatos, o Judiciário tornou-se responsável direto por tudo que aconteceu. Será assim até o desfecho.
Ana acenou, concordando.
- Também penso assim.
- A permissão, na verdade, a ordem, para que a criança fosse devolvida a quem denunciou, o que a colocou em risco, sem sombra de dúvida, todos os riscos, partiu de lá. Não importa se foi decisão de um, atinge e é da alçada de todos. Todos são responsáveis, e essa responsabilidade aumenta a cada dia. – Comentou Jorge. Foi até a mesa, buscou os óculos de leitura, sentou-se.   Abriu a pasta que Ana trouxe. Sacudiu a cabeça, pesaroso. – A cantora sertaneja, a mãe do camarada que a menina denunciou, está cercando a menina e a mãe, para garantir o silêncio. Por isso os pedidos e cargos de assessora na Câmara, a tentativa de elegê-la para que desfrutasse de alguma imunidade e mais benefícios, a loja, os presentes, o salão, e sabe-se o que mais...Infelizmente, é típico de quem quer garantir o silêncio e a colaboração. A mãe da menina tem lucrado, e muito, com isso. Muito esperta...Ganha de um lado, ganha de outro, tendo a moeda o tempo todo nas suas garras, para fazer o que bem entender com ela...E o Judiciário assistindo a tudo e comendo mosca, como se diz por aqui.... Se foram enganados pela mãe da menina e pelos interessados em SCity, agora todos têm ciência e não podem mais esperar. É muito perigoso para as vítimas, essa demora...
Ana levantou-se e foi até a janela.
- Você já parou para pensar no que essa criança passou depois que foi levada? – Perguntou Ana, enquanto observava as nuvens cinzentas, prenúncio de chuva. O vento revolvia as folhas lá fora, e fazia barulho. Um cão latiu, distante e depois uivou, repetidamente. – Se nós, pessoas comuns, debaixo de tantos ataques covardes e perseguições mesquinhas dos interessados, em SCity, conseguimos reunir tantas provas, por que o Estado, com sua máquina e profissionais treinados, não consegue? – Ponderou Ana, pensativa. Deixou a janela e voltou para perto de Jorge, ainda sentado, examinando, contrito, o conteúdo da pasta. - Não somos visitantes do espaço, Einstein ou nada parecido. Tudo é feito tão porcamente, que salta aos olhos. Os lambões não conseguem nem apagar as pegadas sujas.... Qualquer olhar simples e atento, vê. Então, por que na Capital não veem, e sobretudo reparam o que é possível, rápido, antes que algo mais aconteça? Estarão esperando mais um recesso de natal?
- A responsabilidade de tudo, eu repito, que aconteceu a criança e a vocês, é da Capital. São responsáveis até pelos erros de quem, ciente das denúncias detalhadas da criança, num gesto bizarro e insano, assim quero achar que seja, para que não seja nada ainda mais grave, jogou fora todos os protocolos nestes casos, e tomou a posição inversa.
Ana serviu-se de uma maçã. Passava da hora do almoço.
- Nesses casos, é muito comum que os familiares do sujeito acusado pela criança, tentem protegê-lo. E são capazes de tudo. Se a menina já falou antes, tão jovem, com esses anos que passaram, sendo silenciada, coagida, ameaçada e o que mais.... Tem muito a dizer, quando se sentir segura e livre para dizer. E a covardia maior é essa também, seja dos interessados em SCity, seja da mãe do camarada, que lança mão de todos os artifícios e conhecimentos para comprar o silêncio da mãe da criança, que já comprovadamente, sabemos que tem o hábito de negociar usando a infante, ou de quem, ciente, protela....Esse comportamento reforça a veracidade da denúncia que a criança fez do que sofria. Dá para duvidar do ser humano, não? De todas as vilezas que existem, a maldade contra crianças e inocentes, sendo permitida e prolongada por quem deveria agir com responsabilidade e justiça, é algo assustadoramente perverso...
- E os integrantes da Câmara, os que atenderam os pedidos. - Lembrou Ana.
- Todos são responsáveis. Acreditavam que ficariam invisíveis, atrás das suas altas mesas incrustadas, nos gabinetes fechados e escuros, silenciosos...Mas, os crimes contra a infância são devastadores e escandalosos. E vocês têm muitas provas.  Quando tornaram tudo público, agiram muito certo. Com essa fileira de cúmplices, a maioria com certeza lucrando, de alguma forma, financeiramente, a outra   apenas querendo ver o circo pegar fogo ou não dando a mínima para a inocente...O silêncio seria uma porta cerrada para a vítima. O que, sem dúvida, esperavam. E vocês cortaram essa corda, que continha e sufocava a voz da criança.   – Jorge cortou a ponta de um charuto, e depois guardou a caixa de madeira, presente de um bom amigo, onde guardava os outros charutos. Acendeu. Deu algumas baforadas para o alto, pensativo. – Nesses casos, quando existem muitos interesses poderosos, é necessário um machado forte para cortar a corda que prende o barco, cujo nó não desata. É a verdade. Por que não a gritar debaixo de holofotes e espalhar as provas e evidências aos quatro cantos?...- Jorge levantou-se, decidido. – Sim, é brilhante. Brilhante e simples. O que a vítima tem a perder, que já não foi posto em risco ou perdido? Contudo, os que cometeram crimes, e como todo ato ilícito, deixa rastros, os que foram cúmplices, pelas razões diversas, não importa...Ah, esses têm muito a perder. Estão expostos. E cada vez mais enroscados nos erros, nas mentiras. Mais culpados, sujos. A culpa e a responsabilidade dos seus atos torpes, apenas cresce. Não haveria outra forma de proteger a vítima, porque sentenciada foi, injusta, covarde e perversamente, quando a devolveram para quem denunciou.  Guardou e aguentou tudo por um ano, como disse, e corajosa, denunciou. Ela agiu certo, vocês agiram certo, mas teve quem não agiu. Estes, têm que reparar erros. Esses, têm que responder por seus atos.  E a Capital vai ter que segurar nas suas mãos as rédeas, porque o silêncio é tudo o que os criminosos querem, que o tempo passe, e mais...- Olhou para o charuto, apagado. – O mundo, este mundo insano e doente, seria ainda mais desumano e perigosamente estaria perdido, se pessoas como vocês, lúcidos enlouquecidos, não levantassem de vez em quando e nos sacudisse pelos ombros. Porque a Verdade caminha sempre de mãos dadas com a justiça, e sem essas duas, teríamos apenas insanidade e guerra.  A Lei é um freio para a barbárie, uma rédea curta para os criminosos. Sem isso, este mundo acaba.
(A cantora sertaneja por Adriana Janaína Poeta/ in 50 Contos/ SCity)

       


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